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Artigos - 02/12/2019

Transformação Digital: 5 desafios jurídicos das organizações tradicionais

Cada negócio tem uma matriz de riscos jurídicos e regulatórios próprios. Grandes indústrias, em razão de sua produção e mão de obra, podem ter desafios com tributos relativos à industrialização e circulação de seus produtos, questões trabalhistas, previdenciárias e ambientais; empresas de educação, além do trabalhista, podem ter riscos tributários associados a modelos de receita baseados na comercialização de livros e sua rede de distribuição; varejistas normalmente lidam com questões relacionadas a direito do consumidor, trabalhista e tributário. A lista de variáveis é interminável.

Boa parte desses riscos são conhecidos pelos empreendedores e executivos de cada ramo. Ao se realizar a transição para modelos de negócio potencializados pelas plataformas digitais, contudo, a matriz jurídica muda e é preciso passar a conhecê-la para anular ou, onde não for possível, mitigar os novos riscos.

Para além de aspectos óbvios, como o tributário e o trabalhista, abaixo listei 5 desafios jurídicos importantes e comuns a organizações tradicionais que passam pelo processo de transformação digital.

1. Arranjos Contratuais e Societários

O disruptivo não pode matar a vaca leiteira, mas esta, por sua vez, também não deve impedir a inovação. A preparação dos arranjos contratuais, societários e de governança adequados exerce influência relevante para mitigar a contaminação de riscos entre o negócio já estabelecido e a próxima geração da empresa. Em boa parte dos casos, aconselha-se que haja a separação das entidades jurídicas e das operações.

Nesse processo de spin-off, algumas transações podem ser necessárias, como a cisão societária, a transferência de ativos tangíveis e intangíveis para a NewCo, o licenciamento da tecnologia entre as sociedades, bem como a celebração de memorandos de entendimentos, contratos de joint venture, acordos de sócios e outros documentos, quando há alguma aliança com um parceiro tecnológico ou a participação societária por agentes externos à organização. Essas estruturas devem ser juridicamente desenhadas, concatenadas e ter seus termos estabelecidos de maneira tal que façam sentido para a operação, a visão da organização e os riscos envolvidos em cada ponta.

2. Regulatório

As plataformas digitais muitas vezes possibilitam que serviços tradicionais sejam fornecidos de maneira mais eficiente e prática. Quando esses serviços têm alguma característica de mercados regulados, precisam de autorizações públicas ou mesmo irão concorrer com players que estão sujeitos a essas regulações, deve-se ligar a luz amarela.

O conhecimento dos requisitos regulatórios é necessário para evitar que se corra o risco de inviabilizar a nova operação. Em alguns casos, a adoção de certas medidas pode diminuir a barreira de entrada regulatória e as exposições legais, possibilitando o sinal verde para o “go to market”. Pode-se montar também um plano progressivo de oferta de serviços de acordo com a adequação aos requerimentos legais, inclusive mediante a formação de alianças com entidades que já estejam em adequação legal para atuar no setor específico.

O certo é que a inovação impõe a tomada de novos riscos pelo empreendedor e o regulatório fará parte deles, mas é preciso calibrá-lo.

3. Propriedade Intelectual

Os ativos intangíveis, como tecnologias, software, dados e marcas possuem, cada um, tratamento jurídico próprio. O fato de não serem objetos palpáveis não faz com que diferentes entidades do mesmo grupo possam utilizá-los e explorá-los livremente, sob pena de gerar riscos desnecessários. Como os ativos de organizações de setores tradicionais são predominantemente tangíveis (a exemplo de imóveis, equipamentos e produtos em estoque), é preciso atentar às questões de propriedade intelectual normalmente ligadas ao processo de transformação digital. Sua proteção, alocação e licenciamento, seja entre entidades do mesmo grupo, seja para parceiros de negócios e usuários finais, devem ser objeto de análise e formalização. Maus contratos são também uma grande fonte de problemas em torno da propriedade intelectual, pois há práticas e regras específicas para cada tipo de intangível que muitas vezes são ignoradas.

4. Regras do Comércio Eletrônico

Sempre que há a oferta de produtos ou serviços pela internet, haverá a incidência de regras próprias do comércio eletrônico. Algumas delas são mais conhecidas, como o direito de o consumidor devolver produtos e serviços no prazo de 7 dias e ser integralmente reembolsado por isso. Outras requerem a atenção a legislações especificamente aplicáveis ao comércio eletrônico, bem como a boas práticas no assunto.

Há, ainda, mecanismos, tecnologias e procedimentos que podem ser utilizados para diminuir riscos. Um deles é indicação clara, objetiva e gráfica dos principais termos da contratação, o que certamente significa formato mais user friendly do que longos contratos repletos de termos legais. O design, aos poucos absorvido pelos assessores jurídicos sob o nome de legal design, exercerá também um papel importante nesse contexto, facilitando a compreensão, aceitação e validade das disposições contratuais.

5. Privacidade e Proteção de Dados

A coleta, guarda, transferência ou qualquer uso de dados relacionados a uma pessoa natural ou que sejam capazes de identificá-la, ainda que indiretamente, inclusive por enriquecimento de dados, têm uma regulação própria e recente no Brasil. Nome, número de identidade, CPF e e-mail são claramente dados pessoais, mas o conceito inclui também outros tipos de informação, não tão óbvias, como endereço IP (inclusive dinâmico), MAC address e dados de geolocalização, ainda que não diretamente relacionados ao nome de uma pessoa identificada.

Apenas fazer uma política de privacidade não resolverá: é preciso analisar os fluxos de dados existentes para identificação das bases legais que autorizem seu tratamento e das medidas – jurídicas, organizacionais e técnicas – que devem ser tomadas para levar a organização à adequação legal. Setores específicos podem ter também normas próprias, como agentes regulados pelo Banco Central do Brasil.

No final, a união faz a força

Escolhi topificar esses cinco assuntos por nem sempre serem evidentes, apesar de recorrentes. Alguns deles não são habituais até mesmo para experientes empreendedores, executivos e advogados de setores tradicionais. Estes, entretanto, exercem um papel preponderante em todo esse processo e precisam apropriar-se desse conhecimento.

Sabe aquele velho bordão “a união faz a força?”. Pois é, ele é bem aplicável aqui. Afinal, o sucesso da transformação digital de uma organização com anos de tradição depende, em boa medida, de se aliar os recursos de toda ordem existentes aos conhecimentos e habilidades – inclusive legais – próprios das empresas intensivas em tecnologia e inovação.